quinta-feira, 19 de junho de 2014

Transformações

     O Brasil é um país em franca transformação.
     Esgotaram-se modelos antigos, que vigoraram desde 1.500 até agora.
     Não tivemos, aqui, a guerra civil que outras nações enfrentaram e marcaram, com sangue, a sociedade que dali surgiria.
     Mas as transformações são inevitáveis.
     Chegou a nossa hora.
     Aqui e ali ainda vigoram ranços de coronelismo e da casa grande e senzala. Mas a sociedade brasileira tem se mostrado maior do que isso.
     Por isso, soa triste ouvir um líder como o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva evocar luta de classes com interesses eleitoreiros. Lula ainda é uma voz importante no país. Suas palavras ainda encontram ouvidos, embora cada vez menos. Ao invocar luta de classe, Lula se diminui perante a história e mostra que sua veia eleitoreira é mais forte do que o papel de estadista que poderia preservar.
     Mas cada um se mostra como é. Lula é fruto do sindicalismo da década de 1980, quando liderou greves de trabalhadores contra montadoras de automóveis, desafiando a ditadura militar. As greves lideradas por Lula foram fundamentais para enfraquecer a ditadura, abrindo caminho para a democracia.
     O problema é que o DNA sindicalista e o projeto de poder de Lula são fortes demais em Luiz Inácio Lula da Silva. E não dão mostras de que vão ceder. Lula ainda vê, quando lhe convém, um país dividido entre operários e patrões, embora, para sua própria campanha presidencial, tenha chamado o patrão (o empresário mineiro José Alencar) para compor sua chapa como vice.
     Amadurecimento? Não. Pragmatismo político para atrair capital e acalmar mercados. Deu certo. Lula acalmou o capital com escolhas certas e alçou, no seu governo, 40 milhões de pessoas para o mercado de consumo. Bancos ganharam muito dinheiro emprestando grana para esse pessoal. É o jogo. E Lula jogou-o bem, sem se preocupar com luta de classes. Aliás, os donos do capital e boa parte do coronelismo político brasileiros foram aliados de Lula, assim como são da presidente Dilma. Há uma infinidade de "coxinhas" no Planalto. Algumas bem indigestas.
     Mas o país está mudando. Alguma coisa está acontecendo. Uma luz foi acesa. Não se sabe ainda quem acendeu e o que a luz vai mostrar. Mas ela está acesa.
     Se não fosse a campanha eleitoral, soaria quase como estupidez querer dividir o Brasil entre "elite branca", ou "coxinhas", e o resto. Sim, a presidente da República foi xingada numa partida de futebol. Dizem (eu não estava lá) que as vaias partiram da ala vip, ou seja, da "elite branca". Mas Caixa Econômica Federal, Banco do Brasil e BNDES, todos órgãos controlados pelo governo, gastaram R$ 9 milhões comprando ingressos da Copa para dar a seus clientes vips - ou seja, para a "elite branca". É possível que parte das vaias tenha partido dessa turma generosamente agraciada pelo... governo.
     Foi o que bastou para que o ex-presidente colocasse o discurso de classes novamente no debate eleitoral. Colocasse de novo a divisão entre heróis e bandidos. Entre "nós" e "eles". Mas quem são os bandidos? "Quem são os heróis? Quem são os "nós"? Quem são os "eles"? Quem é a "elite branca"? É a mesma que participou do governo Lula e participa do governo Dilma? Quem são os "coxinhas"? A ministra de Cultura de Dilma, Marta Suplicy, é uma legítima representante da "elite branca", segundo a definição de Lula. Assim como o ex-marido dela, Eduardo Suplicy. Ambos são do PT. Seriam eles "coxinhas"? Michel Temer, vice-presidente da República e advogado de elite que manda no PMDB, é "coxinha"? Seria Sarney, aliado do PT, uma "coxinha"? Ou Collor? Ou Maluf?
     Não. O que está acontecendo no Brasil está muitos degraus acima disso. E é bem mais sério.
     O Brasil passa por uma transformação que vai muito além da luta de classes.
     Uma transformação que transcende "coxinhas" e o "nós" e "eles".
     Há uma massa enorme de pessoas insatisfeitas com o que o Brasil foi até hoje, 2014.
     A classe média, engordada no governo Lula, está asfixiada por dívidas, impostos, inflação.
     Não há uma crise política ou econômica grave à vista, nem estamos à beira do abismo.
     Mas há uma ebulição social que solta vapor por todos os lados. Às vezes, o vapor queima a pele.
     Há um esgotamento com fórmulas e palavras soltas abundantemente usados até hoje.
     Estamos tendo o privilégio de assistir uma transformação social autêntica.
     Uma transformação sem donos e sem líderes.
     Estamos vendo um país em busca de sua identidade, a identidade que carregará daqui em diante.
     Um país em busca do encontro e da reconciliação consigo mesmo, e não em busca de ódio ou revanchismo.
     Um país cheio de cidadãos que só querem viver num país limpo e honesto. Querem esperança.
     Como estamos em ano eleitoral, cabe aos candidatos à Presidência da República por o pé na rua e captar o que está acontecendo. Abrir os ouvidos. Escutar. Pensar. Conversar. E, principalmente, evitar gestos inúteis. O próximo presidente terá que saber como lidar com essa transformação e conduzi-la na direção do que a maioria da população realmente deseja. E o que ela quer? Ora, ela tem falado, nas ruas, claramente o que deseja.
     O passado é importante como lição, mas o que está em jogo agora é o futuro.
     Vozes que tentam nos jogar no passado podem acabar dando bom dia a cavalo.
     O Brasil já viveu seu passado. Os brasileiros querem agora saber como vão viver o presente e o futuro.
     São essas as respostas que candidatos precisam responder.
     A luz foi acesa - e quem ninguém se atreva a dizer que foi o responsável pela luz.
     A luz foi acesa pela sociedade, pelo cansaço, pelo desejo real de mudanças, pela vontade de virar a página de uma nação que já perdeu quase todos os bondes da história e não pode se dar ao luxo de perder mais um. A luz não foi acesa pela luta de classes, nem pelo ódio, nem por palavras rancorosas.
     Quem tem ouvidos, que ouça a voz das ruas.
     O que está acontecendo aqui não é apenas uma eleição presidencial. Os xingamentos à presidente Dilma estão inseridos num contexto muito maior. Condená-los ou achar que fazem parte da vida é uma questão menor, diante do tamanho da mudança que está nascendo neste país.
     O dono do Brasil são os brasileiros. Todos eles.  
     Como diria Bob Dylan, os tempos... ah, meu amigo, eles, os tempos, eles estão mudando.
   

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